Sempre tive certeza de uma coisa: a pessoa diz que teve como maior influência um James Joyce ou um Guimarães Rosa está, provavelmente, equivocada a respeito de si própria, a visão turvada pelo pedantismo intelectual. Inda mais ser for de duas gerações pra cá, que cresceram submersa numa multidão de revistas em quadrinhos e desenhos animados. São estes que compõem o grande edifício do imaginário, ao qual os clássicos e os eruditos só acorrem depois, apenas para arrematar a obra. Estes sistematizam e dão forma ao pensamento. São importantes, mas servem, antes de mais nada, à vaidade. A substância, mesmo, vem lá de trás. Ou, pelo menos, o impulso vital para construí-lo.
Lembra das histórias do Penadinho nas revistas do Maurício de Souza? Tinha uma múmia na rodinha de assombrações do cemitério. O Muminho, que, para a criança que o via, não era nada mais que um esqueleto enrolado num papel higiênico. Só que, às vezes, ele aparecia saindo de dentro de um caixão que era ao mesmo tempo uma estátua oca. Ele morava lá (diferente do Chaves, que não morava no barril, mas no sempre incógnito apartamento número 8). A figura do sarcófago, primeiro rudimento de conhecimento sobre o Egito. Depois vem o desenho dos Thundercats, um vilão chamado Mum-Ra, outra múmia, esta toda babenta e ameaçadora (o Muminho era gente boa), dormindo também no seu sarcófago, dentro duma pirâmide, vestígio longínquo da humanidade num mundo pós-apocalíptico.
Ouve-se então uma explicaçãozinha do pai a respeito do tal sarcófago, dá-se uma olhadinha na enciclopédia, observa-se por uns segundinhos a foto da Esfinge. Pega-se um daqueles fascículos comprados em banca, do tipo “Grandes Enigmas da Humanidade” - muito populares nos anos 80, época em que se adorava falar em Triângulo das Bermudas e “Eram os Deuses Astronautas?” era best-seller. Toda casa tinha alguns. Numa dessas topa-se com um artigo de algum vigarista falando de um disco-voador planando na exata linha vertical da Pirâmide de Quéops. Tudo empulhação, é verdade. Mas um delírio para um garoto de doze anos! Claro que ele vai fantasiar alguma coisa sobre aquele povo que parece ter surgido do nada de repente, construiu um monte de edifícios impossíveis por não sei que métodos impenetráveis, num momento em que todo o resto da humanidade mal sabia plantar feijão. E fica-se com essas imagens na cabeça pelo resto da vida, numa camada muito mais profunda, e com as cores muito mais vivas, do que atingiria qualquer aula de história na escola que venhamos a assistir depois. Essas aulas soarão pálidas e decepcionantes. Tediosas fileiras de nomes impronunciáveis de faraós. Todos iguais, sentados impassíveis em seus tronos de alabastro, naquelas fotos tiradas do Museu Nacional do Cairo que éramos jovens demais para entender. Nenhum teria carisma suficiente pra virar um Mum-Ra. Nenhum deles daria um cacete no Lyon. Esquecem-se logo depois todos eles. Os quadrinhos e as animações, no entanto, permanecem.
Tenho convicção que é desse material primordial, quase sagrado pra gente, que vai-se construir, na maturidade, o leitor voraz, o mochileiro solitário, o arqueólogo severo, o erudito insofismável. Claro que ele dirá que suas leituras e suas viagens, que suas peregrinações sob o calor escaldante do Nilo, são para compreender melhor a trajetória da humanidade, para apreender o passado e antecipar o futuro, para contribuir, com seu conhecimento, com a humanidade. Todo um utilitarismo tão pouco sincero. No fundo, ele quer mesmo é reencontrar os bonecos da infância.
Gustavo Palma escreve às segundas-feiras na escritureira.
Lembra das histórias do Penadinho nas revistas do Maurício de Souza? Tinha uma múmia na rodinha de assombrações do cemitério. O Muminho, que, para a criança que o via, não era nada mais que um esqueleto enrolado num papel higiênico. Só que, às vezes, ele aparecia saindo de dentro de um caixão que era ao mesmo tempo uma estátua oca. Ele morava lá (diferente do Chaves, que não morava no barril, mas no sempre incógnito apartamento número 8). A figura do sarcófago, primeiro rudimento de conhecimento sobre o Egito. Depois vem o desenho dos Thundercats, um vilão chamado Mum-Ra, outra múmia, esta toda babenta e ameaçadora (o Muminho era gente boa), dormindo também no seu sarcófago, dentro duma pirâmide, vestígio longínquo da humanidade num mundo pós-apocalíptico.
Ouve-se então uma explicaçãozinha do pai a respeito do tal sarcófago, dá-se uma olhadinha na enciclopédia, observa-se por uns segundinhos a foto da Esfinge. Pega-se um daqueles fascículos comprados em banca, do tipo “Grandes Enigmas da Humanidade” - muito populares nos anos 80, época em que se adorava falar em Triângulo das Bermudas e “Eram os Deuses Astronautas?” era best-seller. Toda casa tinha alguns. Numa dessas topa-se com um artigo de algum vigarista falando de um disco-voador planando na exata linha vertical da Pirâmide de Quéops. Tudo empulhação, é verdade. Mas um delírio para um garoto de doze anos! Claro que ele vai fantasiar alguma coisa sobre aquele povo que parece ter surgido do nada de repente, construiu um monte de edifícios impossíveis por não sei que métodos impenetráveis, num momento em que todo o resto da humanidade mal sabia plantar feijão. E fica-se com essas imagens na cabeça pelo resto da vida, numa camada muito mais profunda, e com as cores muito mais vivas, do que atingiria qualquer aula de história na escola que venhamos a assistir depois. Essas aulas soarão pálidas e decepcionantes. Tediosas fileiras de nomes impronunciáveis de faraós. Todos iguais, sentados impassíveis em seus tronos de alabastro, naquelas fotos tiradas do Museu Nacional do Cairo que éramos jovens demais para entender. Nenhum teria carisma suficiente pra virar um Mum-Ra. Nenhum deles daria um cacete no Lyon. Esquecem-se logo depois todos eles. Os quadrinhos e as animações, no entanto, permanecem.
Tenho convicção que é desse material primordial, quase sagrado pra gente, que vai-se construir, na maturidade, o leitor voraz, o mochileiro solitário, o arqueólogo severo, o erudito insofismável. Claro que ele dirá que suas leituras e suas viagens, que suas peregrinações sob o calor escaldante do Nilo, são para compreender melhor a trajetória da humanidade, para apreender o passado e antecipar o futuro, para contribuir, com seu conhecimento, com a humanidade. Todo um utilitarismo tão pouco sincero. No fundo, ele quer mesmo é reencontrar os bonecos da infância.
Gustavo Palma escreve às segundas-feiras na escritureira.
4 comentários:
eis um dos motivos da próxima viagem?
Egito que te aguarde.
que os deuses d patcha mama AFRICA te iluminem....
pô!
ler o que o Gustavo escreve é muito bom!
paz e bem!
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