13.9.08

CINZA

Resolveu fazer uma limpeza em sua casa. Há dez anos não havia parado para jogar algumas lembranças fora. Decidiu começar pelas roupas, provavelmente seria mais fácil. Não iria jogar aquela roupa que usou em seu primeiro show, ainda gostava de xadrez. Separou alguns pijamas e umas roupas que a mãe presenteava, olhou pela janela e o céu estava cinza, tirou algumas blusas de frio e jogou fora as meias velhas. Colocou as roupas dentro de uma caixa, saiu pela rua e deixou a caixa com roupas velhas na casa de uma família que morava ali perto. Voltou para casa pensando no céu cinza e com um cigarro na boca. Deveria parar de fumar, mas não tinha ninguém para lhe falar isso.
Chegou em casa e foi direto ao baú que guardava coisas de sua juventude. Fotos, vídeos, cartas. Não jogaria nada fora, tirando as cartas de amor, não queria mais saber disso. Leu e releu todas e jogou fora todas as cartas que foram de ex-qualquer coisa. Chorou ao lembrar dos amigos mortos, chorou mais ao lembrar dos amigos que ainda estavam vivos. Onde eles estão agora? Será que moravam no mesmo endereço? Poderia mandar alguns e-mails. Seria tarde demais.
Tarde demais estava para limpar a geladeira. Deixaria para a senhora que faz faxina uma vez na semana.
Domingo era sempre assim, mas aquele céu cinza estava piorando. Acendeu um baseado mas já tinha perdido aquela onda há tempo e mesmo ligando naquele canal de desenhos antigos nada lhe fazia melhorar.
Caiu a noite e saiu de carro, foi em um bar que gostava de freqüentar. Ao chegar ouviu aquela música de uma de suas bandas preferidas “Unfashionable to the end drank his ale too light / Death's head belt buckle yesterday's dreams the transport caf' prophet of doom / Ringing no change in his double-sewn seams in his post-war-babe gloom / Now he's too old to Rock'n'Roll but he's too young to die”. Pensou ser um aviso e foi terminar seu domingo cinzento na cama. A semana seria longa.

Ana Cláudia Soares escreve aos sábados na escritureira.

5 comentários:

Anônimo disse...

Se ele ouviu a música inteira, percebeu que a ultima frase é:

No, you're never too old to Rock'n'Roll if you're too young to die.

Anônimo disse...

muito legal Ana...
diferente do q a gente está acostumado a ler!
bons caminhos!
paz&pem!

Anônimo disse...

seu melhor texto até aqui kaká, um misto de amagura e solidão. belo!

"Voltou para casa pensando no céu cinza e com um cigarro na boca. Deveria parar de fumar, mas não tinha ninguém para lhe falar isso."

ótimo trecho!

**Jadinha Almeida** disse...

esse texto mostra a realidade não somente de uma pessoa que "vive" só. Mas tb de pessoas que sempre estão arrodeadas de pessoas e mesmo assim "vivem" só.

Anônimo disse...

Ah, os intermináveis domingos...Sozinho sim, mas não solitário!! Belo texto.