Um rapaz magro de cabeleira desarmada aproximou-se deixando sobre a mesa um bilhete: “Não é loucura. Teus livros já me afastaram do desespero”. Lygia estava dando palestra numa faculdade nem sei onde, e via que tinha gente dormindo, bocejando e casais namorando. O que ela fazia ali? Algo cresceu nela e ela resolveu transmitir em cólera: “Vocês não querem saber de nada. Querem o fácil. É loucura o que estamos fazendo aqui”. No entanto, no entrevês do que havia acontecido, as secretas palavras que lhe alcançavam pelo bilhete a transportaram para o dia que reencontrou Borges num jantar de escritores.
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Eu conhecia o Borges de antes. Já cego e velhusco, estava tão cercado de gente que eu não conseguiria e nem seria capaz de chegar perto. Quando eu estava pronta para ir embora, vi-o sentado numa cadeira sozinho com sua bengala. Milagrosamente todos haviam desaparecido. Chamei: “Borges”. Sempre tive essa voz rouca, arrastada, mesmo quando jovem. Para meu espanto ele respondeu e reconheceu: “Lygia, a mozarlesca”. Estava com a mão apoiada na bengala e eu coloquei a minha em cima. “Queria me despedir e que dissesse uma coisa. Detesto a palavra mensagem, que perdeu o sentido mais profundo e só se usa comercialmente, mas peço que diga algo, uma mensagem” Ele disse: “Tenho um amigo que morreu quando deixou de sonhar”, e mencionou o nome no exato instante que alguém quebrou um copo ali perto, de modo que não ouvi. Fiquei com vergonha de perguntar, me despedi e saí. Anos mais tarde descobri que o amigo a qual Borges se referia era Quiroga, a quem ele chamava coincidentemente de mozarlesco, um tipo que não chorava ao estender de um luar em fim de tarde, mas que lacrimejava perante os monólogos do personagem de Hamlet. Os paraísos perdidos, os sonhos perdidos. A única coisa que me fez negar a morte e flutuar no mar do mundo foi a arte.
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Lygia sabia que na hora que perdesse a força de sonhar, a realidade viria à tona: “O que eu estou fazendo aqui?”
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Assim, quando estou desanimada, quando acho que devia parar de escrever e ir para praia, quando parece inútil querer penetrar na impenetrável natureza humana, leio o bilhete daquele jovem... Sem nome, sem nada, que nunca mais o vi.
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Frederico César de Oliveira escreve ás terças-feiras no/na Escritureira
12 comentários:
Muito bom o texto...
Coloque um rss.. assim não perdemos as atualizações do blog.
Um abraço...
Fala fredinho... massa o texto cara... curti e achei bem profundo... deu vontade de ver no q a historia vai dar...
Menino...ai....Olha só, já é muito bom mantermos nossa mente ocupada e os livros, alguns, são muito bons pra isso. Sem contar que nos enriquem muito, nos ensinam, nos consolam muitas vezes, despertam sonhos abafados, nos encorajam, emocionam... “Não é loucura. Teus livros já me afastaram do desespero”. E muitos livros salvaram muitas almas!!! Eles estão impregnados de vida, experiências, vitórias... uma escola ao nosso alcance!!! Beijinho Fred, meu maninho, meu amigo!!! TE amo em Cristo Jesus!!! Obrigada por colocar seus dons a serviço! Um grande abraço!!!
São essas pequenas coisas que fazem diferença em nossas vidas. Adorei!
Gostei muito do texto, como disse sonhar é o alimento da alma e o combustivel da vida, si não sonharmos não teremos o q tornar realidade... um abraço Fred
Creio que não tem nada a que se comentar de seus textos, você continua criando um monte de letras intrigantes que me faz ler sempre. Você é o culpado por meu fascínio por literatura... Abraços...
Gostei muito! "quando parece inútil querer penetrar na impenetrável natureza humana". Amanhã é meu dia! Estou animada.. hahaha. Bj
Fred:"não é loucura. Teus "textos" já me afastaram do desespero." (já nos vimos uma vez na secretaria da DSA(Uniube), não é mesmo?) Gente, fico pensando o que estarão fazendo Fred, Bazaka, Gustavo, Ana Cláudia, Jamil, Marcelo, ALDREDO daqui há uns trinta anos...Tomara que ainda escrevam!!!
“Tenho um amigo que morreu quando deixou de sonhar”
Penso que a vida nós dá várias oportunidades para alimentarmos e realizarmos os nossos sonhos, mais também de morrer quando desistimos deles.
São os sonhos que nós dá vida para recomeçarmos todos os dias.
Gostei muito do texto
Beijinhos Fred
Li essa citação sobre sonhos, em um livro que narra um diálogo de Borges com Sabato nos anos 70. Após isso sempre me sinto entrigado com meus sonhos e os procuro colocar em linhas reais, e lapidar minha realidade pensando nos mesmos. Acordado ou não.
Belo texto Fredi, sem delongas um de seus melhores até aqui. Parabéns.
CURIOSO!!HAIHAIA IMAGINA!!!
OPA! sempre mto bem descritivo, viajo ao ler suas narrativas. bom texto! abrass
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