25.8.08

AS EMOÇÕES BÁRBARAS

Andei falando de um personagem do Maurício de Souza na semana passada, mas, confesso, não ando em bons termos com ele. O Maurício andou me decepcionando.
Fui alfabetizado por ele. Nas noites de um janeiro longínquo, quando eu me preparava pra entrar no pré-primário (ainda existe pré-primário hoje?), minha mãe se cansou de ler pra mim os balões dos gibis do Cebolinha (o que eu pedia toda hora). Sentou-me junto dela e explicou, sentenciosa: "Olha, Gustavo, um ‘D’ e um ‘I’ forma um di; um ‘G’ e um ‘U’ formam um gu. Entendeu? Então, leia você." Titubeante, eu arrisquei. Em poucos dias, estava lendo com relativa fluência. Devia isso à minha mãe, mas, mais ainda, àquelas criaturas insólitas que o Maurício criou. A cara delas tem uma orelha exagerada de um lado e uma saliência arredondada de outro (bochechas?), como Picassos afofados. Olhos e bocas aparecem sempre de frente, mesmo quando estão de perfil, e os dedos da mão são todos do mesmo tamanho, tudo no melhor estilo "baixo-relevo de tumba de faraó". Não se pareciam nada comigo. Mesmo assim, a identificação era completa.
Segui com eles pelo menos até o limiar da adolescência. Uma vez alfabetizado, parei de recortar as revistas para acumulá-las. Juntei mais de quatrocentas ao longo dos anos. Com a caneta na mão, reproduzia as figuras à perfeição. Á força de treino perseverante, nada mais. Nunca soube desenhar qualquer outra coisa. O futuro mostraria que eu não teria qualquer talento para desenho, nem para música, nem para arte nenhuma. Apesar disso, ganhei até alguma fama de desenhista na escola.
Nos sábados de manhã - que, na minha lembrança, estão sempre ensolarados, mesmo na chuvosa Pouso Alegre, como se a memória os tivesse iluminado posteriormente, tal qual naqueles templos irlandeses pré-celticos em que, no solstício, um raio de sol ilumina a tumba escura e faz ressuscitar a alma dos mortos - ia com meu pai na agência e ele me comprava a última edição. Pra ele, a Folha de São Paulo, à qual ele permanece fiel até hoje. Era o dia do suplemento infantil. Ali também, mais Cebolinha. Ele sentava no sofá e já o separava pra mim. Com a minha mesada – pai, por que chamávamos de mesada, se era semanal? – comprava as demais edições. Não perdoava nem os almanaques, que eram seleções de histórias cujas originais eu já tinha. Queria acumular, ler e reler. Relia a mesma história vinte, trinta vezes. A barraquinha multicolorida do personagem, de pano e traves de pau, dominava o meu quarto com mais majestade que uma catedral gótica numa cidadezinha do Vale do Loire.
Lembro-me de coadjuvantes há muito abandonados. O Capitão Feio demonizava a sujeira de tal forma que eu ás vezes quase – quase! – sentia vontade de tomar banho sem que a minha mãe mandasse. O Bugu, um surreal ovo com orelhas caídas e membros, que se dizia cachorro e enchia mais o saco do que eu ao meu irmão. Os napões – o que eram eles, afinal? Zum e Bum, bandidos do neolítico. A Ogra, amiga da Tuga e do Piteco, que o meu primo, certa vez, me revelou que era mulher. Minha estupefação foi maior do que aquela que – mais de uma vez já me contaram – muitos tiveram ao descobrir que a Vovó Mafalda era homem (eu sempre soube!). O Rei Leonino. O Papa-Capim. O Horácio, inesquecível Horácio. Tanta coisa que ele me ensinou. As lições de moral das professoras de catecismo me cheiravam a coisa velha e mofada. Mas o Horácio, eu respeitava. Por causa de uma historieta dele, de uma página, que li aos sete anos, nunca consegui dar risada de um amigo que tenha escorregado e caído espalhafatosamente no chão. Foi ele que me contou que um pôr-do-sol era algo a ser observado com atenção e prazer. Uma outra história dele me adiantou em quinze anos o mistério da caverna e das sombras de Platão.
Uma história visionária do Cebolinha do começo dos anos 80, chamada "As Emoções Bárbaras", envenenou antecipadamente o espiritismo que, um pouco mais tarde, meu meio social viria a me incutir. Vou contá-la brevemente. Um ser cósmico, avançadíssimo na hierarquia dos seres vivos, sente que deixou alguma coisa importante para trás. Intui que são as emoções que sentia no começo de sua jornada, e que ele e seus pares – tinham o aspecto de massas arredondadas brilhantes e com olhos, algo entre Shmoo, a Foca Fofa, e Barbapapas dourados - há muito superaram. Exige voltar a vivê-las. Advertem-lhe de que, com isso, perderá milhões de anos de evolução. Ele não se intimida. Quer sentir de novo o que é amizade, gratidão, rancor, arrependimento, todas aquelas emoções dos bárbaros. É atendido: materializa-se como um menino na Terra e passa algumas horas entre as crianças. Brinca, briga, corre, machuca-se e se apaixona. Ama, odeia, agride e implora perdão às mesmas pessoas, tudo ao mesmo tempo.
Depois, ele é arrastado de volta à sua utopia cósmica. Apenas aparentemente ileso, porém. De novo um ser de luz, frio e onisciente, deixa escapar uma lágrima, ali mesmo naquele mundo em que elas são impossíveis. "Estou sentindo uma saudade bárbara daquela turminha", surpreende-se. Parecia querer demonstrar que o fluxo da vida é essencialmente tortuoso e conflituoso. Como, depois disso, acreditar sinceramente na escada evolutiva dos espiritualistas, em que galgar a perfeição significa deixar pra trás o que temos de humanos? A perfeição, no final das contas, equivale ao nada absoluto. Fiquei com o eco daquela historinha – que não compreendi a princípio, é claro - lá no fundo da minha cabeça. A ela agreguei um tanto de leituras contestadoras. Inclinei-me a pensar que os tais espíritos evoluídos à moda kardecista não passam de moralistas sem-sal que escrevem romances ruins e relatos históricos que cheiram à farsa desde a primeira página. Simplificadores brutais que reduzem a condição humana a uma régua em que colocam, numa primeira escala, as algas azuis e as samambaias, numa adiante os elefantes, noutra um pouco mais adiantada, eu, pobre incrédulo. Bem à minha frente, eles próprios, avançados o bastante para aceitar o "grande segredo" da reencarnação. Mais acima ainda, aqueles super-espíritos do porte de Victor Hugo e Tolstói, que já transcenderam a etapa terrena e só voltam a este pobre mundinho para desovar poeminhas e continhos muito, muito inferiores aos que escreviam quando eram apenas humanos. Antes dos vinte anos, o edifício doutrinário já ruíra. Não queria mais pertencer a credo ou ideologia ou pseudo-ciência nenhuma. Queria apenas ser tão humano quanto o Horácio.
Queria dizer por que estou aborrecido com o Maurício de Souza e me perdi em barroquismos de novo. Posso concluir na semana que vem?

Gustavo Palma escreve às segundas-feiras na escritureira.

4 comentários:

Ana Cláudia disse...

Maldita pessoa que inventou de concluir textos na outra semana.

Gustavo, Adorei esse texto. Principalmente a parte da régua.
Amo o Horácio, amo Turma da Mônica. Meu sonho de consumo é um Horácio de pelúcia. Nunca vi.
Outra personagem que eu gostava da Turma da Mônica era a Tina. Até lançaram uma série de gibi dela, mas eu me decepcionei... Ainda bem que foram só três.
É sempre assim quando se espera alguma coisa ha muito tempo.

Anônimo disse...

GU, eu chamava de "semanada" a mesadinha que recebia todo sábado!! Eu comprava sorvetes e vc, revistas...taí: vc fiscal e , eu, gorducha!!! Feliz por voltar a ler Gustavo Palma!

Anônimo disse...

Adorei o texto! Eu também gostava de gibis mas confesso que preferia os livros infantis "paradidáticos" da escola... Bons tempos e boas lembranças daquela época. :)

Anônimo disse...

ahh...
se não fossem os barroquismos...!!!

muito bom!