22.9.08

OS SONHOS NÃO ENVELHECEM (2)

Ouro Preto é como uma Meca da mineiridade. Sempre uma força estranha nos impele a voltar pra lá. Uma ligação muito mais mística, fluídica e intermitente do que eu tenho, por exemplo com São Paulo, que prende com cabos metálicos e tirânicos e inquebráveis, como o balão cativo de Pedro Nava. Não é à toa que eu tenha crescido entre estes dois pólos, na Pouso Alegre construída no caminho que, outrora, ligava uma à outra, e que tenha arrastado minha bicicleta e meus kichutes pelas mesmas trilhas que as mulas dos tropeiros de antigamente. Como a me preparar para o que, um dia, as duas cidades significariam pra mim.
Como eu disse, sempre voltamos a Ouro Preto. É sempre difícil falar sobre o que eu busco lá. Acho que tem a ver com o caldo primordial de que nós, mineiros, emergimos, e que eu já procurava difuso nas minhas andanças (aparentemente sem rumo) pelos limites de Pouso Alegre, pelas colinas que a separavam (ou antes, faziam uma transição tênue, bucólica e fascinante), com a zona rural. Aos vinte anos, comecei a subir a antiga estrada. Ônibus de madrugada pela Fernão Dias (no sentido oposto ao que, já desde há muito, me levava a São Paulo), uma horinha na rodoviária de Belo Horizonte antes de embarcar para a venerável Vila Rica. O dia inteiro com uma mochilinha nas costas, suando ladeira acima ladeira abaixo, sentindo uma saudade atávica de gente que morreu muito antes de eu nascer mas que vive em mim de alguma forma e baliza tudo o que existe entre o meu jeito de falar, de amar e de praguejar.
Essas viagens sempre tinham algo de reencontro, e sempre incompleto. A igrejinha guarnecida de filas de casarios com filas de janelas uniformes, a Madona Negra do Mestre Ataíde coabitando celestialmente com o retábulo da Trindade do Aleijadinho, os CDs com as musicalizações da Marília de Dirceu comprados em algum sebo de esquina apareciam como representações concretas de uma divindade às quais eu olhava agradecido mas ainda sem plena familiaridade. O que eu buscava era difuso, algo que corria no riacho do meu peito e cuja nascente eu queria ver de perto. Algo parecido com a névoa que, para os antigos Celtas, separava o mundo sensorial daquele dos deuses. E, como névoa que era, eu devia senti-la solta pelo ar. Talvez emanassem de alguma forma daquelas pedras sagradas que calçam as ladeiras ou da madeira tornada pulsante pelo cinzel do Antônio Francisco Lisboa, mas não era elas.
Nesta última viagem, eu finalmente tive algum contato com isso que eu procurava sem saber o que era. Foi muito marcante o que aconteceu num certo gramado quase de frente para o adro da São Francisco de Assis. Difícil descrever a lua cheia incidindo sobre a cruz patriarcal. Mas posso afirmar com segurança que o São Francisco da portada do Aleijadinho estava a nos saudar . Já ouvi os críticos falarem da imperícia do escultor, que, ao representar o santo, em alto relevo, lateralmente, não soube desenhar em perspectiva seus braços abertos. Estes aparecem inverossimilmente rotacionados em relação ao resto do corpo, de modo que o tronco, contrastando com a cabeça e pernas em perfil, aparece visto de frente. Naquela noite de sábado eu finalmente entendi: o Aleijadinho, sem deixar de expressar a devoção do santo em louvação a uma visão mística exterior ao quadro, fez questão de mostrar os braços em sua totalidade, como a dar boas-vindas a reuniões como aquela de que eu e o Alfredo participamos logo ali em frente. Eram cerca de vinte estudantes , munidos de violões e saxofones, entoando canções dos Beatles e do Clube da Esquina.Vez ou outra, uma voz feminina se erguia solfejante, ecoava só o tempo suficiente para fazer algum incauto se apaixonar, e se recolhia com a mesma sutileza com que emergira. O Alfredo - que nunca se absteve de enriquecer qualquer experiência que celebrasse a amizade – deixou a mim e ao nosso pobre vinho de garrafa plástica por alguns minutos, improvisou um instrumento musical de não sei que objeto ao alcance da mão e se juntou à cantoria. Eu continuei guardando o meu silêncio reverencial. A harmonia que reinava ali tinha algo de rito milenar que aqueles estudantes pareciam celebrar. Lembravam-me sacerdotes de alguma religião pagã, invocando aquela mesma divindade mineira que eu tinha ido buscar tantas vezes ali aos pés do Itacolomi. Entoavam seus hinos com fervor catártico e pareciam não se contentar com nada menos que a presença física do tal deus. E não é que conseguiram mesmo?
Apenas algumas horas depois, o Milton Nascimento dominava a Praça da Liberdade, como um orgulhoso deus africano de voz de bronze. “Uai – dirão alguns – por que a surpresa? Vocês não tinham ido lá pra vê-lo, mesmo?” Tá certo, mas a verdade é que eu e o Alfredo não acreditávamos sinceramente até minutos antes do espetáculo. Durante todo o fim de semana, subimos e descemos ladeiras incansavelmente, tal qual eu fazia antes, sozinho. Entre nós, vigorava uma espécie de acordo tácito de evitar o assunto, acordo que só violamos umas poucas vezes. Era como se soubéssemos que Milton em Ouro Preto era algo grande demais para caber na nossa mesquinha realidade, mas quiséssemos manter a ilusão até o último momento. Preferimos outros assuntos. Falei sobre os sobrados e, sobretudo, os seus quintais, onde as crianças mineiras podiam flutuar entre a movimentação das ruas, a quietude dos riachos e o perigo dos matagais. Sugeri, meio desastradamente como me é de hábito, que a infância plena dos quintais talvez evocasse Minas Gerais ainda mais completamente que os casarios e os frontões barrocos.
E o Milton veio mesmo. E, como que para confirmar o que eu balbuciava horas antes, entoou o seu “Ponta de Areia”, parceria sua com Fernando Brant. Como esquecer dele olhando para aquele céu de lua cheia de seresta de Diamantina e proclamando: “Velho maquinista com seu boné / lembra o povo alegre que vinha cortejar / Maria Fumaça não canta mais / Para moças, flores, janelas e quintais”. Saudade pura de infâncias puras em uma Minas Gerais pura. E pareceu-me que Ouro Preto tinha finalmente me contemplado com o que eu tantas vezes viera lhe pedir.

Gustavo Palma escreve às segundas-feiras na escritureira.

3 comentários:

Anônimo disse...

BRAVO!!

Anônimo disse...

ponta de areia... coisa linda de ouvir em ouro preto!

Anônimo disse...

Me deu vontade de ouvir Lô Borges.. rs