Deixa eu explicar o meu problema com o Maurício de Souza, então. O tempo dos gibis passou. Adulto, voltei a eles, numa onda de nostalgia. Passei pelo menos um ano (2003, eu acho) comprando todos da Turma da Mônica, mensalmente. Ao mesmo tempo, recompus o essencial da minha antiga coleção, por meio de sebos na internet. Comparei as duas eras. O quadro me pareceu desalentador, pra dizer o mínimo.
Quase não acreditei no que vi. Tinha se perdido a substância das histórias. Antes, os balões ocupavam metade dos quadrinhos, tanto era o que os personagens tinham a nos dizer. Agora, esgotam-se numa correria desesperada e sem sentido. Os personagens quase não se falam. Só pulam e se esgoelam, feito macacos, o tempo todo. Tudo pra provocar riso fácil, como que mimetizando a linguagem de alguns desenhos animados atuais, em que o movimento é tudo e a narrativa, nada. Inútil. Duvido que aquilo impressione mesmo uma criança em idade pré-escolar. Não é à toa que vejo cada vez menos crianças com um gibi na mão. Na minha época, todo mundo lia, mesmo que fosse escondido. Já flagrei exemplares da Mônica na casa dos coleguinhas mais machos, destes que escalavam o time de futebol no colégio (me deixando sempre por último, é claro) e corriam seis vezes mais voltas em torno do campo nas aulas de educação física.
Quero acreditar que as coisas se passaram desse modo (sei lá se foi assim): O Maurício aposentou-se, deixando a sua produtora nas mãos de um grupo de administradores. A partir de então, limitar-se-ia a algumas intervenções ocasionais, de natureza estritamente artística. Teriam sido estes administradores (segundo a minha teoria) que transformaram a obra do Venerável Demiurgo numa máquina de ganhar dinheiro (de eficiência discutível, diga-se). Daí, enfileiraram-se os disparates. Rolo perdeu sua feição clássica: antes parecia um cachorro das histórias do Bidu, com uma impagável helicoidal azul em torno do rosto que era ao mesmo tempo seu cabelo e sua barba. Era mais uma criatura que não se parecia fisicamente com ninguém (ou com nada), mas com quem todo mundo se identificava. Agora ostenta uma anódina cara de gente. Ganhou até aquele nariz em forma de 7 invertido que caracteriza os adultos mais elegantes do universo do Maurício (os feios têm nariz de bola de bilhar). Acusem-me de saudosista, mas eu achava bem melhor antes. Sua amiga inseparável, a Tina (cada vez mais boazuda, ela que era uma amável tábua hippie nos anos 70), deu de imitar o Indiana Jones. Mas quem dera o problema fosse só esse. Apareceu também um imperdoável Ronaldinho Gaúcho para suceder ao Pelezinho dos anos 70. Como assim, suceder ao Pelezinho? Em torno deste - que teve uma revista própria, mensal, que deve ter durado uns cinco anos - criou-se uma rede de personagens formada por meninos de uma cidade do interior (inspirada na Bauru da infância do homenageado). Eles brigavam na rua, corriam, quebravam vidraça, namoravam escondido, armavam trave com bambus no quintal e bolas com meias enroladas quando não tinham uma de verdade. Crianças mais genuinamente brasileiras que o próprio Chico Bento! O Ronaldinho não passa de um logotipo publicitário correndo pelos quadrinhos. E abrindo espaço para outras nulidades. Semana passada, ouvi falar que Otávio Mesquita (Otávio Mesquita!) ia virar personagem permanente!
E pensar que eu li histórias inspiradas em Homero, Shakespeare e Platão!
O Grande Autor deve ter ido desfrutar de um merecido descanso ao lado da sua segunda safra de filhos, que ele teve com a sua esposa asiática. Uma aposentadoria que misturaria idílio familiar com criação artística. Aqui reside minha outra mágoa. Todos sabemos que a Mônica, a Magali e a Maria Cebolinha são inspiradas nas primeiras filhas do Criador. Acho que, trinta anos depois, ele se viu na obrigação de criar um personagem para todos os que vieram depois. Apareceram uns tais Nimbus, Do Contra e Marina. Criaturinhas inexpressivas e unidimensionais, em torno das quais a turma original tinha que gravitar em historinhas sem graça nenhuma. Mestre Imortal, não tinha mesmo outra maneira de deixar a criançada contente?
Por algum tempo, esquentei o projeto de escrever um e-mail de protesto ao Maurício. Pra minha sorte, uma contra-idéia barrou o caminho. Pensei, de mim pra mim: “você, que nunca escreveu para agradecer a esse cara por ter te alfabetizado, por ter-lhe dado quase 80 por cento do seu vocabulário, por ter mostrado a direção de todas as suas viagens, por ter-lhe aberto caminho para conhecer Proust e Dostoievski, por ter-lhe ensinado a enxergar com respeito e não com desdém suas origens caipiras, agora quer escrever pra reclamar de ninharias? Você é um babaca, Gustavo!”
Sou mesmo. Como fui um babaca em escrever este artigo. Mestre Imortal, eu só tenho a agradecer!
Gustavo Palma escreve às segundas-feiras na escritureira.
Quase não acreditei no que vi. Tinha se perdido a substância das histórias. Antes, os balões ocupavam metade dos quadrinhos, tanto era o que os personagens tinham a nos dizer. Agora, esgotam-se numa correria desesperada e sem sentido. Os personagens quase não se falam. Só pulam e se esgoelam, feito macacos, o tempo todo. Tudo pra provocar riso fácil, como que mimetizando a linguagem de alguns desenhos animados atuais, em que o movimento é tudo e a narrativa, nada. Inútil. Duvido que aquilo impressione mesmo uma criança em idade pré-escolar. Não é à toa que vejo cada vez menos crianças com um gibi na mão. Na minha época, todo mundo lia, mesmo que fosse escondido. Já flagrei exemplares da Mônica na casa dos coleguinhas mais machos, destes que escalavam o time de futebol no colégio (me deixando sempre por último, é claro) e corriam seis vezes mais voltas em torno do campo nas aulas de educação física.
Quero acreditar que as coisas se passaram desse modo (sei lá se foi assim): O Maurício aposentou-se, deixando a sua produtora nas mãos de um grupo de administradores. A partir de então, limitar-se-ia a algumas intervenções ocasionais, de natureza estritamente artística. Teriam sido estes administradores (segundo a minha teoria) que transformaram a obra do Venerável Demiurgo numa máquina de ganhar dinheiro (de eficiência discutível, diga-se). Daí, enfileiraram-se os disparates. Rolo perdeu sua feição clássica: antes parecia um cachorro das histórias do Bidu, com uma impagável helicoidal azul em torno do rosto que era ao mesmo tempo seu cabelo e sua barba. Era mais uma criatura que não se parecia fisicamente com ninguém (ou com nada), mas com quem todo mundo se identificava. Agora ostenta uma anódina cara de gente. Ganhou até aquele nariz em forma de 7 invertido que caracteriza os adultos mais elegantes do universo do Maurício (os feios têm nariz de bola de bilhar). Acusem-me de saudosista, mas eu achava bem melhor antes. Sua amiga inseparável, a Tina (cada vez mais boazuda, ela que era uma amável tábua hippie nos anos 70), deu de imitar o Indiana Jones. Mas quem dera o problema fosse só esse. Apareceu também um imperdoável Ronaldinho Gaúcho para suceder ao Pelezinho dos anos 70. Como assim, suceder ao Pelezinho? Em torno deste - que teve uma revista própria, mensal, que deve ter durado uns cinco anos - criou-se uma rede de personagens formada por meninos de uma cidade do interior (inspirada na Bauru da infância do homenageado). Eles brigavam na rua, corriam, quebravam vidraça, namoravam escondido, armavam trave com bambus no quintal e bolas com meias enroladas quando não tinham uma de verdade. Crianças mais genuinamente brasileiras que o próprio Chico Bento! O Ronaldinho não passa de um logotipo publicitário correndo pelos quadrinhos. E abrindo espaço para outras nulidades. Semana passada, ouvi falar que Otávio Mesquita (Otávio Mesquita!) ia virar personagem permanente!
E pensar que eu li histórias inspiradas em Homero, Shakespeare e Platão!
O Grande Autor deve ter ido desfrutar de um merecido descanso ao lado da sua segunda safra de filhos, que ele teve com a sua esposa asiática. Uma aposentadoria que misturaria idílio familiar com criação artística. Aqui reside minha outra mágoa. Todos sabemos que a Mônica, a Magali e a Maria Cebolinha são inspiradas nas primeiras filhas do Criador. Acho que, trinta anos depois, ele se viu na obrigação de criar um personagem para todos os que vieram depois. Apareceram uns tais Nimbus, Do Contra e Marina. Criaturinhas inexpressivas e unidimensionais, em torno das quais a turma original tinha que gravitar em historinhas sem graça nenhuma. Mestre Imortal, não tinha mesmo outra maneira de deixar a criançada contente?
Por algum tempo, esquentei o projeto de escrever um e-mail de protesto ao Maurício. Pra minha sorte, uma contra-idéia barrou o caminho. Pensei, de mim pra mim: “você, que nunca escreveu para agradecer a esse cara por ter te alfabetizado, por ter-lhe dado quase 80 por cento do seu vocabulário, por ter mostrado a direção de todas as suas viagens, por ter-lhe aberto caminho para conhecer Proust e Dostoievski, por ter-lhe ensinado a enxergar com respeito e não com desdém suas origens caipiras, agora quer escrever pra reclamar de ninharias? Você é um babaca, Gustavo!”
Sou mesmo. Como fui um babaca em escrever este artigo. Mestre Imortal, eu só tenho a agradecer!
Gustavo Palma escreve às segundas-feiras na escritureira.
4 comentários:
Isso aí, Gu! Retratar-se com Maurício de Souza foi uma boa ação. Nossa geração só tem a agradecer ao "Mestre Imortal".
Eu não gosto muito de histórias em quadrinhos.. Mas as antigas da Mônica são mesmo boas! Saudade de ler isso! =]
Tambem estou triste com o Mauricio de Souza, principalmente por causa da Tina. Eu queria ser igual a Tina.
Ana Claudia
Oi Gu,não te acho saudosista! O que aconteceu com o Maurício,foi que a esscência dele acabou.Antes ele tinha certeza que estava alfabetizando uma criança pra um mundo melhor,hj ele só pensa no "ter" o "ser" ficou esquecido...o importante que vc terá esta mesma esscência, boa pra passar para os seus filhos,bem lembrado contando...Bj
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